| Paolo Ruffilli nasceu em 
                    Itália em 1949. Publicou alguns volumes de poesia, 
                    entre os quais Piccola colazione (Garzanti, 1987), que obteve 
                    o "American Poetry Prize"; Diario di Normandia (Amadeus, 
                    1990), que obteve o "Premio Eugenio Montale"; Camera 
                    oscura (Garzanti, 1992); Nuvole (Vianello, 1995), com fotografias 
                    de F. Roiter; La gioia e il lutto (Marsilio, 2001), que obteve 
                    o "Prix Européen".Ocupa-se, relativamente á parte italiana, do projecto 
                    de pôr em rede a poesia contemporânea.
 HYPERLINK http://www.paoloruffilli.it
  NO ACTO DE PARTIR
SOBRE A TUA GARGANTA
 A leve curva da gargantaao pronunciar uma palavra,
 a sombra sobre o peito e
 o recorte da mão
 que sobe junto ao flanco,
 aquele branco rosado
 esbatido apenas
 num desenho
 de estrias.
 Traços minimos, talvez,
 pontos ligados num segmento:
 forma cor consistência.
 Só o detalhe
 ao fazer-se objecto
 e lugar circunscrito
 aos nossos sentidos,
 torna presente
 e não mais abstracto
 nem mais evanescente
 ou apagado e vão
 o instinto a opor
 ao tempo uma imanência
 fingindo-se um instante
 eterno o mundo
 antes que o rasto
 resvale
 caindo ao fundo.
 1À MINHA FILHA
 Como herói, bem sabes,saí da fila:
 não tenho cara
 para desempenhar o papel,
 tímido e desajeitado
 incerto de todas as verdades.
 Mas não importa
 que eu seja perfeito
 e omnipotente,
 então não teria
 decerto nada
 a sugerir-te
 e não estaria presente
 como, ao contrário,
 espero ficar,
 pronto a satisfazer
 ainda que intermitente
 as tuas curiosidades.
 2ANTECÂMARAS
 Quantas entradasvestíbulos poltronas
 salas de espera
 com outros, cautos
 e astutos, que passaram
 à frente e não ficaram
 ali calados e perplexos
 na antecâmara do mundo.
 Quantas portas fechadas
 batidas ou travadas
 entradas e saídas
 sem solução.
 Quantas filas
 instâncias e petições
 para ver reconhecido,
 no fundo, nada mais
 do que o devido.
 3
 SERVOS DO MUNDO
 A falsidade do intelecto,os obscuros monstros
 do pensamento, o efeito
 das vãs imagens
 sobre o peito, o eterno
 apelo aos recursos
 do amor, a sombra
 do iludido verdadeiro
 sem real solução. Só com
 um dado certo, no fundo,
 já nem sequer a previsão
 do tempo perdido
 a servir o mundo.
 4
 FECHADOS NO SONHO
 Nascidos do corpoda natureza, separados
 e levantando voo, mas
 recaídos na ânsia
 e por temor.
 E apesar disso amando
 por si própria,
 sim, a vida.
 Desencantados
 das coisas humanas
 pela experiência
 mas pouco a pouco
 habituados a olhá-las,
 de novo, de longe
 e, na distância,
 vendo-as mais belas.
 Dispostos a suportar
 incómodos e mágoas
 delitos e infortúnios.
 Fechados no sonho
 intacto de sair deles
 quiçá como, imunes.
 5BONECA
 Pequena cópia purano feminino,
 exemplo e figura ritual
 do comer e do cobrir-se
 no uso familiar.
 Boca infantil
 no exercício e cuidado
 de réplicas vivas
 tornando-se adultos
 de imitação.
 Caixa moral
 dos maus pensamentos
 dos sonhos e desejos
 de cavidades e estreitos
 ocultos por vestidos
 convertendo-os nos praticantes
 sem pessoas
 do fogo virtual
 da carne.
 6
 INSATISFAÇÃO
 Amas-me ao ponto de engolir-me,
 tornar-me prisioneiro
 num estado
 que presumo
 feliz por inteiro,
 de mastigar-me e,
 de natureza
 intacta dominante,
 de cuspir-me depois
 esmagado e triturado
 mal flutuando
 sobre a parte de ti
 que de súbito se sente
 abandonada
 e nada satisfeita
 ao ser por mim,
 como reclamas,
 amada sem medida.
 7
 MENTIRA
 Há em toda a parte figuras escuras
 que, pelo gosto
 do poder,
 administram na sombra
 espaços e carreiras,
 felizes de propagarem
 a sua ronha.
 Cegas aos méritos
 e às qualidades
 tornam-se partidárias
 dos seus servos
 e sicários.
 Maquilhando sofisticando
 a verdade, mantêm
 os bons no esgoto
 e empurram os outros
 para a frente com a violência
 da mentira.
 8
 NO ACTO DE PARTIR
 Depois, por fim,eis-me em movimento
 não obstante
 a tentação de ficar
 nas zonas mais próximas
 à vista do que me é familiar.
 Em compensação, parto
 só para voltar.
 Nem sequer sei
 o que é que vale
 e me convence,
 que pensamento
 uma intuição certa
 um sexto sentido
 que me empurra,
 a consciência fulminante
 de uma descoberta
 paradoxal,
 que é preciso perder-se
 para se poder de facto
 encontrar.
 9
 REGRESSO
 A ideia, de repentesurgida, o pensamento
 da noite, de mim
 finalmente regressado e
 do contacto
 restabelecido
 da ânsia solta
 com a chave a girar
 por dentro, na porta.
 10
 MATANÇAS
 A violência que inchae explode forte
 mal salta a crosta,
 a potência mortal
 de algozes e estupradores
 em versão quase normal,
 com as mãos afundadas
 no sangue de uma vítima
 sempre renovada
 e o horror, depois,
 da carne martirizada
 cordeiro de uma própria
 culpa original,
 a ferida infinita
 tendo, marcada, a intenção
 de com ela fazer a ostensão.
 O cutelo do escuro
 sacrifício ritual
 nos profanos matadouros
 deste mundo.
 11DESLUMBRAMENTOS
 Deslumbram-te como fadas morganas
 criadas pelos olhos
 por uma falsa razão,
 enxameiam à tua volta
 de forma mais ardente,
 chamam-te para elas
 com os seus sinos
 sedutores
 para se tornarem
 o dono
 e entretanto estorvam-te,
 puxam-te até ao fundo
 com o seu alcance
 totalmente inalcançavel,
 tornam premente
 o desejo
 de tê-las para ti
 e deixam-te precisamente
 no momento de as ter.
 As coisas do mundo.
 12
 SOPRO
 É naquele remoto soprodentro do coração
 que cada um reconhece
 o seu destino.
 O sonho mais proibido:
 a ideia de um infinito
 por fim quotidiano
 deixado em sorte
 ao corpo do amor.
 Rendido e aprisionado
 para conservar intacto
 o seu sabor,
 subtraído ao vazio
 apertado entre as coxas
 longamente, em vão,
 como a água
 que todavia escorre
 da mão.
 13EM LISBOA
 É uma abstracçãoe não um facto:
 o objecto
 de um pensamento
 um conceito
 mais que um sentimento
 um estado desejado
 perseguido pela mente
 e porém insatisfeito
 perdido antes
 de tê-lo conquistado
 e nunca, pois, gozado
 (sempre prestes
 a ser
) acreditado
 e delirado:
 o sentido do prazer.
 14LISBOA
 1A origem secreta
 a fissura
 a nascente
 a fonte, de um projectar-se
 no melhor, no positivo.
 Naquilo que, sendo,
 pensado para durar
 se torna depois estado
 inamovível cessado.
 Mas entretanto é geiser,
 jacto de vapor
 espumante.
 
 15
 2O NOME DA CIDADE
 O nome ainda nãopronunciado:
 o que, nas voltas
 da mente, de cada vez
 se repete por inteiro
 e que porém não foi
 num enxerto continuado
 da acção passada
 (intricada e solta)
 no agarrar
 das suas próprias pinças.
 163
 DIRECTO A CASCAIS
 No fazer-se ao caminhotomadas as distâncias
 considerado o ângulo
 de deriva
 dentro do vazio
 o desvio impreciso
 a dejecção
 Ao imprevisto
 ligado ao movimento
 impôs a razão
 antídoto de linhas rectas:
 cais horários terminais.
 Contra os riscos
 do desconhecido.
 17
  4CASAS EM DISSOLVÊNCIA
 Frágil espelhocortina de medo
 na qual ressalta o vazio.
 Imprime à seta
 o voo e desliza ao lado
 a mão temerosa.
 E o mundo cai
 na rede
 roubado à névoa
 colhido e evocado
 nas marcas do gesso
 que se grava, raspa,
 arrasta, chia:
 monstro de escrita.
 Assim, do escuro inerte
 a lasca poeirenta
 fixa lá do fundo
 a beira do mundo.
 185
 DE AVIÃO SOBRE LISBOA
 Frágil frio escurocheio transparente:
 fonte de paz e de recobro
 pala e muro para o nada
 passagem quieta
 no líquido escorrer
 do mundo. Jaz
 o opaco do calcário
 depositando-se no fundo.
 Augúrio e boas-vindas
 e sonho na perfeição:
 o suco o filtro a poção.
 Quebrado caído
 fragmentado. Forma
 sem volume
 de um conteúdo.
 19
 6O EIXO DO MUNDO
 Seta directaao invisível do céu
 salto no alto
 do infinito
 dedo bem plantado
 no fundo desde o topo
 e entretanto sujeito
 ao possível abalo
 que o remove do encaixe
 caído sobre si
 longa haste
 derramada pelo solo
 deitada e revolvida
 que coze paz e guerra
 em companhia
 luz refracta:
 o eixo do mundo
 árvore e pilar
 gigante de energia
 subtraída ao cosmos.
 20SOBRE O LARGO DE MARTIM MONIZ
 O acender-se eo apagar-se
 (por acaso?) da vida
 o traço luminoso
 o rasto que deixa
 atrás de si
 o que foi
 amado ou não amado
 contudo desconhecido
 a alegria e o luto:
 tudo derramado
 no vaso cego
 entre os braços do escuro.
 A marca esbatida
 porém reflorescida
 de cada coisa.
 A sombra e o odor
 já nem sequer a cor
 o pensamento pensado
 da rosa.
 21PORTAS DO MAR
 Barreira muro separa-águas- ilha e ponte -
 túnel galeria passagem
 de que filtrar para si
 o resto do mundo.
 Invisível e curiosa
 costura
 que pesca do fundo
 enxerta ânsia
 e assegura integridade.
 O duplo jogo:
 entrada saída
 medo e confidência
 a pausa e o movimento.
 A verdade que se abre
 e se fecha sobre o ignoto.
 22 TORRE DE BELÉM Num jogo de espelhossonho e realidade
 multiplicando-se
 no efeito de mistura
 - cocktail ou batido
 mixórdia ou elixir -
 inventaram
 e eis que revelaram
 o universo da vida
 num repto extravagante
 fazendo eterno ir
 de cada instante,
 oceano do pouco mar
 atravessado
 e transatlântico
 do pequeno barco
 que sobre ele se aventurou.
 23FELICIDADE
 Em frente do que mudae dura sem pose
 não vale a intenção
 talvez escrupulosa
 de quem se põe, a meio
 do percurso, a questão
 e incerto se responde
 que, posta apenas
 na conta máxima,
 a felicidade
 se confunde,pelo contrário,
 com a própria dissolução
 de cada coisa.
 24
 JANELA
 Filtro de trocaentre o dentro e o fora
 tampa do imerso
 entrega ao circunscrito
 o seu círculo
 do espaço aberto
 e infinito
 muro de prisão
 fechadura
 corte e nascente
 princípio do trajecto
 ainda protegido
 esponja que absorve
 do horizonte para o centro
 o universo escandido
 acima do olho um dedo.
 25 O ROMANCE DE LISBOA Memória e armazém:a nascente, no coração
 da vida, o laço
 e o gancho, o continente
 que aponta a rota
 o interdito e a licença
 amor e desamor
 alegria e desgosto.
 O obstáculo abatido
 quebrado, em si
 entretanto voado
 no mágico tapete.
 A essência fechada
 em caixa, o puro
 destilado, já sem
 a escória, desossado.
 Com o seu piloto
 entrado no submergível
 às voltas pelo mar
 dos pequenos caracteres
 subtraídos à deriva
 do fio de uma história.
 
 26 LISBOA ENCICLOPÉDIA
 Não um qualquere seja como for.
 O tecido, eleito
 e construído,
 o infinito reduzido
 a uma medida, por
 orgulho, talvez
 por medo
 limado e estreito
 estendido dentro
 do leito
 da enciclopédia.
 27MIRADOURO
 O eu alertadiante de si
 obstáculo inibido
 e sobre o rasto
 do facto despistado.
 Mas orifício-chave,
 fenda aberta para
 o impensado: que reste
 dentro do fundo liso
 a profundidade e no finito
 esteja o ilimitado,
 continuamente morto
 porém já renascido.
 A imagem diferente
 do imaginado.
 E, no jogo entre
 diferença e identidade,
 desvelado o pouco
 de verdade, na descoberta
 de que o mundo conhecido
 não é, não, a única realidade.
 28
 TARDE EM LISBOA
 O pequeno cilindroesmiuçado, pêndulo
 aguçado descido
 no poço da tarde.
 Com os seus dedos
 ágeis velozes
 prontos a escorregar
 em frente, à descoberta:
 posto avançado
 rasto negro
 oferecido em penhor
 e depois seguido pela cor.
 O primeiro signo
 inscrito no claror.
 29 A PRIMEIRA VEZ Queria ter-tea primeira vez
 que te vi:
 ter-te entre os braços,
 sentir a tua vida
 bater incerta
 contra a minha unida
 e roubar-ta pelos olhos
 pelo respirar
 par dentro da saliva,
 morder-te e mastigar-te
 aberta e solta
 em todas as tuas partes
 para te reencontrar,
 depois, no ser pessoa.
 Foi este
 o meu sonho
 de Lisboa.
 30
 SALSA LATINA Assim, de chofreapanho-me no espelho
 apertado no abraço
 enquanto me projecto
 para além de mim:
 contrato desejo
 suplício de um sujeito
 que mima a fusão. Mas
 anula a ficção
 e o sonho
 da união mais total
 o próprio objecto
 duro que, entretanto,
 cresce no meio
 de nós dois
 e que se opõe
 corpo estranho
 à sua própria afirmação.
 31
 DEBAIXO DA BLUSA
 Quando estiver longesonharei contigo
 e, sonhando,
 esforçar-me-ei
 por não sonhar
 pensando tocar
 de verdade
 a tua pele de lua,
 os teus cabelos
 e meterei a mão
 nas tuas costas
 debaixo da blusa
 por ti guiado ali
 sorrindo pelo acordo.
 E conseguirei
 através do fantasma
 tocar-te o corpo.
 32
 ÍMAN DOCE Sóo teu sorriso
 é já um universo
 com todo o infinito
 dos seus espaços
 resumido na graça
 do teu rosto:
 os olhos brilhantes,
 o nariz firme
 e, de repente,
 a curvatura do lábio
 sobre o branco
 dos dentes.
 Um não sei quê
 que te faz ser:
 o teu calor,
 a tua força secreta,
 o íman doce
 É a porta misteriosa
 que me empurrou
 directo ao teu amor.
 33DESTINOS
 Se esteé o modo
 de agarrar a vida
 sugando-a
 fora da boca,
 há uma razão
 e é por ela
 que tinhas medo
 do contacto.
 Passando pelos sentidos
 entramos um no outro
 e é difícil
 voltarmos separados,
 de novo soltos
 por fios já entrançados.
 Tu já me tinhas entrado cá
 dentro, pelos olhos.
 Mas respirando-te agora
 minha, cada vez mais apertada,
 pela primeira vez
 sinto misturados
 os dois destinos.
 Ès dissolvida em mim
 com alma e corpo
 mesmo quando dizes
 que, com a distância,
 o tempo atenuará
 todas as coisas
 tornando-nos esbatidos:
 desintoxicados
 um do outro
 (sós, de novo,
 e ainda mais traídos).
 34
 URGÊNCIA
 Chamas-mee pretendes-me
 com a urgência
 da tua pele:
 queres que te tome
 e, mais,
 que te violente.
 Pedes-mo
 sem falar,
 gostas que o faça
 tal como esperas
 e a mim agrada-me fazê-lo
 satisfazendo
 o que pretendes
 porque te amo
 e estamos sem defesas
 contentes por usar
 as mãos e língua
 e dentes
 um sobre o outro:
 corpos rendidos
 corpos absorventes.
 35MÃOS
 Tudo as mãos sabem,dizem e fazem:
 gostas que eu te toque
 e eu precipito-me em ti
 com o meu tocar-te,
 agarro-me aos teus flancos
 para dentro de ti
 cair até ao fundo
 e sinto que te tenho
 quanto mais
 sou possuído,
 salvo quanto mais
 estou perdido.
 E em ti não entro
 só pela boca,
 pelos olhos
 e pelo nariz,
 ando no teu suor
 e fico no teu sangue.
 Esquartejados
 um dentro do outro,
 no esquartejamento
 mais felizes.
 36
 RAINHA
 Tu és perfeitano teu ser dividida
 sem sentir
 a cisão
 e de cada vez
 toda inteira
 daqui e dali,
 dona verdadeira
 da situação
 no teu querer-me
 por a distância
 saciada
 do meu estado
 dependente e apaixonado
 e, como uma rainha,
 disso sempre
 te aproveitaste
 e eu, para te ter,
 isso aceitei.
 37
 OS ASSALTOS DO CORAÇÃO
 Queres e não queresassim de seguida
 em muda sucessão
 como o piscar
 dos teus olhos.
 Senhora de ti própria
 à distância,
 logo que podes
 cedes e abandonas-te
 quando me tocas.
 Mas queixas-te
 pelo avesso do remorso
 do que sentes.
 Eis que sofres os assaltos
 do coração
 e, por isso, de cada
 vez sou punido.
 Quando estás distante
 calas e tentas
 afogar-me no silêncio,
 pedes-me desculpa
 assim que me revês
 mas sublinhas
 que é duro
 ter que mentir
 para me ver.
 Dize-lo a mim
 que, para te ter,
 roubo e perjuro.
 38
 DESPERTAR Vigio o mundoque está voltando
 ao dia
 atrás da prega
 do teu rosto
 adormecido
 para lá do respirar
 que te atravessa
 o nariz
 dentro do sorriso
 que o sonho te deixou.
 È a alegria do amante
 no amado,
 por aquilo que é,
 sim, nascente
 mas no seu estado
 por isso ressurgente
 e nunca de todo nado.
 39 O NUNCA MAIS O termo, reduzidoao incrível, com
 todos os seus
 suspensos remorsos
 subentendidos. Um
 ponto firme no
 resto que se move,
 pensado e repetido
 pronunciado como
 dado impossível:
 "Nunca mais".
 Pelo que
 se podia
 e que não foi.
 40
 LÍTOTES "Não ofendendonão ser ofendido
 e, não gozando,
 também não padecer"
 um sofisma subtil,
 nada a dizer, porém
 velado pelo halo
 transbordante da lítotes.
 O que é destruído
 Padece e, não,
 o que destrói
 não goza, todavia.
 41 A FÚRIA A força que se ampliapremida e propagada
 ainda sabe-se lá
 por que extensão,
 a fúria incontrastada
 e prepotente enquanto
 sobe altiva e investe
 com a violência
 e adenta cada uma
 das partes vivas,
 a potência intacta
 que me obriga a sair
 fora de mim estendido
 e em desequilíbrio
 para dentro do rasgão
 da tua ferida
 aberta e tumefacta
 rendida e todavia
 saco e jaula
 ao mesmo tempo por sorte
 e por condenação
 jamais cicatrizada.
 42 SAUDADE
 Fica e não te escondasespelho do meu coração
 ofendido e traidor.
 Não me deixes.
 Reconheço-te, sim,
 e de ti reclamo ainda
 a minha parte melhor.
 E esse sou eu
 como era então
 mas, no meu tornar-me
 velho, adulterado:
 distraído, desonesto,
 mentiroso.
 E porém sob o peso
 do erro, de novo
 no rasto do passado,
 para me reencontrar
 no lugar que me foi destinado
 pela tua promessa antiga.
 E, depois, seja o que for
 que diga e em que me tenha
 agora transformado
 embora aqui me queixe
 de saudade
 sou ainda ou esforço-me
 por ser, entretanto,
 aquele que não pára
 de procurar o
 que não encontrou.
 Trad. português: Manuel Simões, 
                    Maria do Rosario Pedreira
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